O terceiro pilar do yoga no cotidiano é chamado de īśvarapraṇidhāna, essa é uma uma prática mais sofisticada que as duas anteriores. Ao longo da vida vamos entendendo que há muitas coisas que não controlamos. As vezes ficamos doentes sem aviso prévio, chove bem no dia que marcamos o evento tão esperado, ou alguém nos liga para falar algo urgente bem na hora que estávamos indo deitar, por exemplo. Muitas coisas estão além do que conseguimos monitorar, até mesmo quando temos um planejamento muito bem estabelecido, como para construir nossa casa ou perder alguns quilinhos, ainda assim não temos pleno domínio sobre os resultados, é algo que simplesmente acontece, ou não, ao longo do tempo de esforço. Um retrato bobo disso pode ser percebido no simples ato de lavar a louça; nós sabemos que temos que pegar o sabão, esfregar a panela e depois enxaguá-la né? Mas quantas vezes fomos surpreendidos com uma sujeirinha que precisou de uma água quente, ou de umas braçadas mais fortes? Enfim, os resultados vêm quando vêm, como vêm, e frequentemente haverão surpresas no caminho…
Īśvarapraṇidhāna começa então nesse lugar, de desenvolvermos uma forma mais sábia de nos relacionarmos com os aspectos da vida que não podem ser controlados, que são maiores que nós mesmos. Para isso há que se ter maturidade. Entender e lidar docilmente, por exemplo, com a questão de que nossa mente é a panela que suja todos os dias, que nossas marcas mentais podem por vezes grudar e levar mais tempo para sair. Devemos entender a necessidade de manter esforços na direção de polir tal ferramenta, mesmo sem a expectativa apegada ao resultado. Será necessária uma boa quantidade de sabedoria também. Sobre nossas estruturas internas, para reconhecermos que não somos a sujeira, tão pouco a panela. Sobre os métodos que serão o sabão e a água quente que removerão tais obstáculos e ainda construirão uma base segura que guiará o caminho. Com essa maturidade e sabedoria conduzindo o processo podemos então nos entregar livres de expectativas para permitir que a craca seja dissolvida com leveza, ou que a situação seja percebida e aproveitada com mais tranquilidade.
Īśvarapraṇidhāna parte do reconhecimento de que há uma força maior. Será então o ato de abraçar nossas vulnerabilidades e impotências e entregar-nos sabiamente ao relacionamento com o que está além de nós. Um ato de humildade, devoção e fé, de prostração consciente aos pés do que é superior. Remete ao respeito a tudo que está ‘’acima’’ de nós. Como por exemplo nossos professores, que como ferramentas para nos entregar um conhecimento confiável são também símbolos desse alvo sublime.
No cotidiano é ainda ação livre de expectativas. Colocarmos mais atenção na qualidade das atitudes sem tantos apegos aos seus frutos, fazer porque faz sentido, e buscar este sentido com mais sensibilidade.
Este conceito também poderia ser traduzido como ‘’entrega ou amor à nossa verdadeira natureza mais profunda’’; no intento de conduzir-nos à um relacionamento com isso que é mais sutil, elevado e permanente dentro de nós. Uma fonte pura de vida e consciência que existe no íntimo de cada ser. Algo maior, que não é tocado pelos nossos sofrimentos e enganos. Para muitos de nós, estar próximo a natureza pode trazer este tipo de experiência, pois na matéria, ela é a criação mais perfeita e harmônica existente. Não a controlamos, e ela expressa profundidade e sensibilidade inigualáveis.
A ideia que temos de uma força superior, além de nossa regência, pode ser vista através do outro, das relações que mantemos. Pode ser percebida na fauna, na flora e em toda a vida e ciclos da natureza e gradualmente ainda ser reconhecida dentro da gente.
Em outro contexto, īśvarapraṇidhāna é apresentado também como uma prática pontual muito elevada, que vai na direção de dirigir-se conscientemente de modo regular à nossa autêntica natureza, ao real ser em nós. Cada um tem um jeito próprio de enxergar e desenvolver isso, conforme seus entendimentos. Para alguns pode começar com a manutenção de um contato habitual com o ambiente natural em busca dessa sensibilidade. Para outros a meditação, a oração, a recitação de cantos ou versos e etc, cumprirão esse papel de cultivar dia após dia a relação com isso que está mais além.
īśvarapraṇidhānādvā
ईश्वरप्रणिधानाद्वा
’’Dirigir-se regularmente à verdadeira natureza com um sentimento de aceitação e entrega ao seu poder certamente possibilita alcançar o estado de yoga’’ (tradução livre)YOGA SŪTRA DE PATAÑJALI 1.23